Sim, farei...; e hora a hora passa o dia...Farei, e dia a dia passa o mês...E eu, cheio sempre só do que faria,Vejo que o que faria se não fez,De mim, mesmo em inútil nostalgia.
Farei, farei... Anos os meses sãoQuando são muitos-anos, toda a vida,Tudo... E sempre a mesma sensaçãoQue qualquer cousa há-de ser conseguida,E sempre quieto o pé e inerte a mão...
Farei, farei, farei... Sim, qualquer horaTalvez me traga o esforço e a vitória,Mas será só se mos trouxer de fora.Quis tudo -- a paz, ilusão, a glória...Que obscuro absurdo a minha alma chora?
Farei talvez um dia um poema meu,Não qualquer cousa que, se eu a analiso,É só a teia que se em mim teceuDe tanto alheio e anónimo improvisoQue ou a mim ou a eles esqueceu...
Um poema próprio, em que me vá o ser,Em que eu diga o que sinto e o que sou,Sem pensar, sem fingir e sem querer,Como um lugar exacto, o onde estou,E onde me possam, como sou, me ver.
Ah, mas quem pode ser o que é? Quem sabeTer a alma que tem? Quem é quem é?Sombras de nós, só reflectir nos cabe.Mas reflectir, ramos irreais, o quê?Talvez só o vento que nos fecha e abre.
Sossega, coração! Não desesperes!Talvez um dia, para além dos dias,Encontres o que queres porque o queres.Então, livre de falsas nostalgias,Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre o sonho o que só quer não tê-lo!Pobre esperança a de existir somente!Como quem passa a mão pelo cabeloE em si mesmo se sente diferente,Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!O sossego não quer razão nem causa.Quer só a noite plácida e enorme,A grande, universal, solene pausaAntes que tudo em tudo se transforme.
Fernando Pessoa
1933